quarta-feira, 29 de setembro de 2010

FILÓSOFO CLÍNICO: O SUJEITO E SUA DANÇA À BEIRA DO ABISMO

ARTIGOS DE UM FILÓSOFO CLÍNICO

FILÓSOFO CLÍNICO: O SUJEITO E SUA DANÇA À BEIRA DO ABISMO
Hélio Strassburger

“É urgente partir sem medo e sem demora para onde nascem os sonhos , buscar novas artes de esculpir a vida.”
Armando Artur- poeta moçambicano

Quero compartilhar com vocês, alguns instantes do meu ser Filósofo Clínico. Os enfoques e perspectivas se apresentam, nos contextos da singularidade de cada caso, podendo mudar diagnósticos e prognósticos, se tratarmos de outros casos em outros contextos.

Espero alcançar a vocês alguns instrumentos capazes de contribuir para o ser terapeuta de cada um, através dos relatos e vivências aqui abordados. A escolha dos casos clínicos foi aleatória. Provavelmente, alguns dos mais interessantes, não possam ser compartilhados para além da interseção clínica, devido às singularidades envolvidas.
Acredito, que o ser terapeuta, acontece em um processo, numa dialética capaz de envolver sujeitos, num vir-a-ser impregnado de fracassos e acertos, onde a nossa humanidade se coloca à prova em cada momento, através dos silêncios, palavras, gestos e atitudes, na direção de compreender e atuar com o outro.
Existe uma cena no filme “Desconstruindo Harry”, de Woody Allen, em que o personagem fica “fora do foco”. Pois bem, às vezes se faz necessário desfocar nossos pré-juízos, para re-adequar nossa compreensão às possibilidades do novo, por um caminho sem estrada ou direção a seguir, no qual constantemente o fenômeno se mostra.
Penso que a clínica se inicia, quando a pessoa cogita a possibilidade de fazer terapia. A partir daí, numa sucessão de eventos, ela faz a sua escolha, no que se refere o profissional que irá atende-la. Neste momento, o sujeito já esboça alterações comportamentais, como o caso de S., sem queixas de insônia, alcoolismo e depressão: “Quando decidi te procurar, indicado por uma amiga das caminhadas no parque, logo imaginei como deveria me vestir para encontra-lo, precisava arrumar o cabelo que estava horrível e escolher um sapato adequado! Ouvi dizer que filósofos clínicos não medicam, não internam e não acreditam em loucura! Afinal, agora eu tinha alguém para me entender! Naquela noite, após marcar a consulta, dormi sete horas diretas, sem precisar da minha cervejinha.”
Noutro caso, M., após uma viagem de seis horas de Florianópolis/SC a Porto Alegre/RS, relata: “Saber que tu estavas aqui em Porto Alegre, no teu consultório, e que nós tínhamos duas horas de terapia, tornou minha vida melhor com uma semana de antecedência, até a viagem foi prazerosa.”
O filósofo Merleau-Ponty, em seu texto “Olho e o espírito”, esclarece: “O homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal magia que transforma coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu no outro e o outro em mim.”
O papel preliminar do Filósofo Clínico é de acolher e compreender a pessoa que lhe chega. Às vezes, a pessoa já passou por vários profissionais, esteve internada e incapacitada de interagir com a vida. Nestes casos , assim me parece, o abismo se aproxima mais de quem sofre. Foi assim com R., que veio ao consultório após alguns anos de terapia no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Ela trazia consigo o diagnóstico de esquizofrenia. Nós não atuamos com base nas tipologias, por que, dentre outras coisas, acreditamos que nossa humanidade requer atenção e dedicação especial, para além das penitências alopáticas.
Compreensão e cuidados se fazem caso a caso, de acordo com o universo existencial de cada um. Muitas vezes, trata-se de um assunto imediato ou queixa, associado a manifestações de esteticidade, as quais contextualizadas na historicidade da pessoa, passam a ser compreensíveis, cujos comportamentos cumprem uma ou mais funções na malha intelectiva do sujeito que chega. Pois bem, R. assim se apresentou, referida, de forma pouco estruturada, que não era compreendida pelas pessoas, dizia uma coisa e interpretavam outra, sentia muita saudade de casa e da família, apesar de ter sido expulsa por eles, pois brigava muito com todos.
Neste caso, a desestruturação de raciocínio foi padrão, no que se refere ao primeiro encontro, à medida que a narrativa do seu histórico avançava, R. mostrava-se mais “à vontade” quando falava de si e das suas circunstâncias. Dona de uma estrutura riquíssima, a autogenia assim se mostrou: “R. amava o exótico, tanto com objetos, lugares ou pessoas, necessitava buscar “coisas novas” a todo instante, sua paixão pela arte ajudou muito a contemplar este aspecto, expresso pelas pinturas, esculturas e pesquisa com moda de época mas seguia incompreendida pelas pessoas que lhe eram caras, a mãe, irmãos e a filha. Considerada “alienada”, porque não desempenhava uma atividade produtiva tradicional, R. ficava cada vez mais triste, até o momento em que um “iluminado” proferiu sua sentença: R. está maluca!; parecer avalizado por um profissional que a internou!
Trabalhando com uma metodologia diferente e, entendendo a pessoa através de um viés epistemológico afinado com nossa humanidade, pude compreender a novidade do sujeito que aparecia. Isto se deu pela via da interseção, por onde a solidão de R., bem como seus demais sentimentos e percepções puderam ser compartilhados. Através da historicidade, e da elaboração autogênica, fomos descobrindo, R. e eu, que uma das possibilidades para estabelecer contato como mundo era sua arte, cujos significados ela própria traduziria aos demais, ou seja, ela interpretaria a si mesma utilizando-se da pintura e dos desenhos.
Com a participação e ajuda de seu companheiro e da sua filha, isto se tornou possível. Hoje R. tem uma produção artística de valor, encontrando-se outra vez inserida no contexto que antes não a compreendia.
A análise da matéria- prima oferecida pelo partilhante na etapa da localização existencial, se faz à base para o momento seguinte da clínica, ou seja, a montagem da estrutura de pensamento e a identificação dos submodos, isto quando o partilhante possui uma interseção positiva com o filósofo clínico, capaz de impulsionar uma disponibilidade ou uma abertura à perspectiva terapêutica que se oferece.
Num texto intitulado “A casa dos loucos”, o filósofo francês Michel Foucault ensina: “No fundo da prática científica existe um discurso que diz: nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela esta presente aqui e em todo lugar.”
Foucault me faz relembrar um caso clínico que batizei como: “o marinheiro que sabia curar”; um dos raros trabalhos que tive, onde coincidiram assunto imediato e assunto último: G. um ex – marinheiro europeu, atualmente residindo em, Porto Alegre, aposentado em razão de acidente, chegou ao meu consultório indicado por uma amiga em comum. Sua fala inicial, dizia de dores insuportáveis no braço direito, insônia e muita tristeza devido a este fato. Uma análise preliminar da estrutura mostrava que G. não tinha o braço direito!
Com as circunstâncias investigadas, o diagnóstico ficou acessível à compreensão clínica, ou seja, G. perdeu o braço em um acidente de moto, aos 24 anos de idade, quando recebeu a notícia da morte do pai. Neste evento, ficou em coma por alguns dias, num hospital no sul da França, onde relatou experiências “fora do corpo”. Recuperado, G. volta ao Brasil e aqui se estabelece, vem residir em Porto Alegre e conhece sua companheira. Mas as dores no braço continuam, realiza vários exame médicos e nada consegue. G. é levado pela companheira a um centro espírita, onde descobre uma habilidade peculiar: com a mão que lhe resta, onde G. toca, transmite uma energia capaz de curar. E, quanto mais se utiliza desta força, mais forte fica, suavizando inclusive as dores. Segundo G., seus colegas da comunidade espírita, que possuem o dom da mediunidade, afirmam enxergar o braço direito de G. em ação, em plena atividade curativa.
G. revela ter auxiliado várias pessoas nestes últimos anos, inclusive pacientes com diagnósticos de câncer terminal, os quais apresentaram um elevado grau de remissão dos mesmos.
G. permanece atuando, numa comunidade extremamente pobre, no sopé do morro Porto Alegre, incógnito, realizando um trabalho maravilhoso junto aos que sofrem, longe dos hospitais, universidades e do mundo das “compreensões racionais” convencionais.
Encontrar alguém com quem compartilhar sua dores e descobertas, tem ajudado G. a prosseguir na sua atividade de auxílio aqui em Porto Alegre. Uma tradução sintetizada da autogenia de G. : O que acha de si associado ao papel existencial e tópico de singularidade em interseção negativa com pré-juízos, busca e princípios de verdade, isto tudo em processos inversivos de somaticidade, desconstruidos por comportamentos fortemente enraizados nas funções intelectivas que embasam os tópicos acima.
Os desafios se mostram de várias maneiras, como o exemplo de A . 27 anos, usuário de cocaína há sete, comportamento violento em certos contextos, o que já lhe valeu algumas internações e dois tiros na perna. Trazido pela avó, que queria salva-lo das drogas, A . no início se mostrava muito desconfiado, falando muito, e com expressões que me pareciam desprovidas de conteúdo. Iniciamos com duas sessões por semana. No primeiro mês A . cumpriu fielmente sua parte no contrato, após, começou a chegar atrasado, inicialmente 10 a 15min., depois 30 min., até as ausências sem aviso. O jogo tinha iniciado!
Porque era desta forma que ele estabelecia relação com o mundo. Vejamos a autogenia: “A . sempre fora educado para ser melhor, foi assim na escola, no judô, natação e inglês. Ocorre que A . não conseguia se destacar, e, cada vez que isto acontecia, a mãe o punia severamente, pois ela via o filho como o melhor, com a convivência do pai; as medidas educativas consistiam em trancá-lo no quarto, sem alimentação, exposição ao ridículo na comparação com os outros irmãos e amigos, bem como proibição de passeios ou jogos. A . descobriu que poderia ludibriar a mãe, falsificando notas e resultados, para agrada-la. Assim foi por algum tempo, até a descoberta e as punições que se seguiram. A . age como se esperasse a todo instante, uma restrição punitiva de alguém, com o agravante de reações violentas em alguns casos. Pós duas semanas de ausência, liguei para A . perguntando-lhe como ele estava e, se precisava de algo, não mencionando suas ausências aos encontros. Ele buscou justificar-se, reafirmei que importava saber se estava bem, ele disse que sim, mas nenhum indício que retornaria a terapia. Por intuição na semana seguinte, no horário
Da sessão de A ., lá estava eu a sua espera, a razão dizendo que ele não apareceria, mas algo afirmava que viria, foi o que aconteceu. A . apareceu no horário, e, os conteúdos trabalhados, foram de grande valor para o processo terapêutico, bem como os encontros seguintes. Hoje, temos seis meses de caminhada. A . ainda falta algumas sessões, mente um pouco, como que para testar onde está pisando. Tento mostrar, que existe um mundo diferente por trás das imagens torcidas que seu espelho vinha lhe mostrando até hoje, sou uma espécie de cúmplice neste trajeto que A . percorre, na direção de uma vida melhor para si.
Algumas vezes os ensinamentos da teoria só servem como teoria. Estou falando, por exemplo, do agendamento mínimo nos exames categoriais. Lembro de um atendimento efetuado com C . ,09 anos de idade, trazida pela mãe, cujo diagnóstico (proferido pela mãe) era “loucura”. Para viabilizar a terapia, utilizei, esteticidade seletiva combinada com análise indireta, para qualificar aquilo que acredito ser o motor de partida da clínica: a interseção!
O dado de semiose prioritário da menina era o desenho, através do qual ela falava de si e de suas vivências. Para chegar à este momento de terapia, o trabalho foi desafiador: iniciamos a clínica com a presença da mãe, o que não ajudou nenhum pouco, pois ela falava pela filha. Em outro momento, perguntei-lhe: o que estava acontecendo? Resposta: não sei! Após, tentei descobrir onde nasceu, e recebi um sonoro silencio como resposta! E agora? O que fazer? Tentei desenhar em um quadro e também não funcionou, C . parecia entediada e desconfiada. Após pedir à mãe para que se retirasse, resolvi inverter os papéis, ou seja, eu iria falar um pouco de minha história para C ., desenhando em um pedaço de papel com giz de cera. Comecei desenhando a casa onde nasci, nem cheguei a concluir o telhado, quando C . tomou de minha mão o giz e afolha, dizendo: “agora eu é que vou desenhar a minha casa!” e o trabalho aconteceu, via esteticidade seletiva, pude desenvolver a historicidade de C . e montar sua estrutura de pensamento, utilizando uma ferramenta promissora, neste caso: uma folha em branco e um giz de cera!
A referencia do lugar da clínica, na interseção entre o filósofo clínico e seu partilhante, me parece fundamental, embora passe despercebida por muitos terapeutas. Alguns preferem atuar em consltórios, quando seus partilhantes, pela estruturação própria, gostariam de eleger uma praça, com muito verde, arvores e flores; em outros casos, alguns partilhantes gostam de caminhar, e o filósofo desmerece esta característica de seu parceiro de interseção. Este é um item, dentre tantos significativos para uma atividade clínica favorável ao partilhante. Esta atividade terapêutica que se inicia, se mantém ou se extingue, pelo caminho das variáveis da interseção.
O diálogo entre dois sujeitos pode ser uma terapia eficiente. Através do olhar, de um abraço generoso ou pelo som da voz do outro, se estabelece uma freqüência capaz de impulsionar o trabalho clínico, podendo ocorrer uma interseção significativa entre consciência, vontade e representação, expressos por este encontro.
Arthur Schopenhauer em seu texto “O mundo com vontade e representação”, destaca: “o objeto nada é além da representação do sujeito, assim também o sujeito, dissolvendo-se por inteiro no objeto observado, se torna ele próprio este objeto, na medida em que toda a consciência nada mais é além da imagem límpida deste”. Neste sentido, uma ferramenta eficaz para a viabilização clínica, possibilitando, através de si, a utilização de novos instrumentos clínicos, como o caso dos sonhos.
O ano era 1999, na cidade de Florianópolis/SC, encaminhada pelo colega Lúcio Packter, atendi L., uma moça de 16 anos, que chegou com um diagnóstico peculiar de seu oftalmologista: embora tivesse todas as condições clínicas para enxergar, estava cega!
Este foi o assunto, resumido, que a trouxe: uma reação somática a um evento específico. L., tinha ido à excursão da escola com um grupo de colegas, passar o dia numa praia próxima. Brincariam, jogaram e passearam bastante. Ao final do dia, quando os professores reuniam o grupo para o retorno, alguns meninos do lugar passam a apedrejar o ônibus em que L. estava junto com seus colegas, instalando-se um pânico generalizado. L. tenta sair pelo corredor do veiculo, tropeça, cai e é pisoteada pelos colegas e amigos. A partir deste momento, ainda no chão, L. não pode mais enxergar! Provavelmente, não quer ver mais nada, penso eu! Mas, por que? Quais os motivos? Qual a relação tópica desencadeante desta violente reação somática?
Historicidade apurada com encontros de 2 a 3 horas, e, o diagnóstico revela como significativos: como o mundo parece reforçado por pré-juízos em conflito com emoções subsidiadas pela axiologia, reforçados pelo papel existencial com desfecho somático.
Este caso assim se mostrou fenomenologicamente: “para L. o que importa nesta vida e o que faz este mundo legal, são os amigos e amigas que se pode ter, especialmente aqueles da escola, os mesmos que a pisotearam no ônibus! Para L. esta atitude era inacreditável! Ela não poderia odiar quem amava, amigos de praia, escola e diversão, que era o que valia a pena na sua cidade. Basicamente, esta estruturação era o dado atualizado de um padrão em sua vida, ou seja, ela considerava-se traída pela família por ser pobre e desconsiderada pelos pais, relacionando-se fortemente com uma tia e com os amigos, esforçando-se na manutenção desta amizade.
Além de uma interseção muito positiva, utilizei-me de alguns instrumentos clínicos (submodos), encontrados no mundo existencial de L., para, junto com ela, trabalhar a desconstrução que, eu acreditava, fariam L. voltar a ver, como: roterizar associado ao lado sensorial, combinados com percepção, mantendo-a inversiva e em recíproca de inversão através de deslocamento curtos. O leitor poderia perguntar: Mas como? Deslocamentos curtos? Sensorial? Ela não estava cega? Pois foi assim que ocorre. Mantendo L. em recíproca de inversão e inversão alternadamente, eu ia narrando a paisagem ao redor, alternando cores, propondo aromas, sugerindo toques nas arvores, em suas folhas,
Descrevendo o azul do céu, que para L., estava um tanto escuro, parecendo que ia chover. L. participou avidamente do roteiro, como se estivesse enxergando, inclusive descrevendo o tipo de flor que estava “vendo” e os aromas que sentia.
Mas, surpreendeu-me, quando utilizou-se de um sonho, para desconstruir sua elaboração somática, a qual impedia sua visão. Ela sonhou, na noite anterior ao nosso terceiro encontro, que estava caindo de um penhasco muito alto, e, precisava abrir os olhos para ver onde ia bater, enxergou pedras e muita água, ao se debater e rolar na cama, L. cai e acorda, abrindo os olhos e enxergando novamente. A euforia foi tanta, que correu para fora de casa, onde o sol muito forte a faz desmaiar.
A tia carrega L. para dentro de casa, e, aos poucos, faz com que L. recobre a consciência e a visão. Basicamente, L. realizou, via adição e deslocamentos, permanecendo inversiva, um roteiro com desfecho semelhante ao impacto que sofrera no passeio, uma queda para superar a outra, através de um sonho!
Espero que este pequeno texto, possa servir como uma proposta de diálogo, buscando no combustível das críticas e reflexões, alternativas e subsídios para aperfeiçoar a nossa filosofia que se faz clínica, bem como estimular e desenvolver a arte singular de cada um em ser humano.
Penso que, uma parte significativa da atividade terapêutica, como se desenvolve em meu compartilhar diário, não pode ser expressa por nossos, às vezes limitados dados de semiose, pois fazem parte do intangível, da subjetividade que surge como resultado de um encontro de subjetividades, da intuição, das singularidades que vão se desenvolvendo, de um ouvir e um dizer que falam para alem das pretensões da razão, por isto, me perdoem por não poder dizer mais.

Uma fonte extraordinária - Hélio Strassburger

ARTIGOS DE UM FILÓSOFO CLÍNICO
Uma fonte extraordinária
Hélio Strassburger


“Que distância percorrida desde as margens do Nada, desse Nada que nós fomos até esse alguém, por ridículo que seja, que reencontra o seu ser para além do sonho!”
Gaston Bachelard

Um viés de interseção entre expressividade e busca pode ser encontrado no cotidiano. Mesmo quando a pessoa faça referência a si mesma como lugar de realização, seus episódios existenciais podem ser desmerecidos e ilegíveis ao olhar sem noção de si mesmo.

A desorientação precursora, tratada pela adesão apressada a ideologia da sua tribo, costuma significar infindáveis labirintos a afastá-lo cada vez mais de seu eixo. O ambiente onde nasceu e sua família, onde aprendeu a ler e escrever, a escola e a igreja, já deformam autenticidades, ainda mais quando a criança começa a expressar contradições de aparente sem sentido. Daí logo surge alguém para ensinar os meios para renunciar os sonhos em razão da aceitação social.

O alcance da domesticação depende muito da singularidade e do contexto envolvidos. Lógicas de rebanho apreciam fundamentar rituais para desacreditar autonomias e deixar tudo como está. A noção de coerência institucional oferecida desde cedo, além de dificultar possibilidades de invenção e criatividade, também serve para enraizar sensações de deslocamento e impossibilidade de conhecer outras verdades. Assim a diferença é ameaça e passa a ser vista como marginal, um desajuste com o mundo considerado normal.

É possível viver uma vida inteira em desacordo consigo mesmo. Instantes de negação aos momentos de recém-descoberta. Os itinerários da originalidade pessoal podem seguir distorcidos, e viver como se fossem expectadores nos próprios eventos.

A busca pessoal pode seguir desfigurada ao tentar se adequar aos arranjos da conformação dominante. Um discurso bem acabado por onde se instituem as leis e o gesso aos propósitos de mudança. O significado de cada um passa a ser desmerecido, como se fosse inevitável viver assim.

Gilles Deleuze refere: “Só Dioniso, o artista criador, atinge a potência das metamorfoses que o faz devir, dando testemunho de uma vida que jorra; ele eleva a potência do falso a um grau que se efetua não mais na forma, porém na transformação – ‘virtude que dá’, ou criação de possibilidades de vida: transmutação.”

O bem estar representado pela verdade das cidades, aparece como algo a ser alcançado a qualquer preço. Endividados, devedores e credores se encontram culpados e a sustentar uma lógica das aparências. Um fascínio irresistível a acenar coisas cada vez mais distantes, onde o sujeito passa a ser objeto. Os dias se passam na ante-sala das promessas não cumpridas.

Ao discurso previsível da normalidade a busca pessoal dessemelhante surge como ilusão. Premonição inadequada e distante dos consensos estabelecidos na tribo. Para mostrar os dias como entregues a própria sorte, refere tudo ao redor como destituído de pontos de fuga.

O ser animado pela juventude e alegria dos recém-chegados na aldeia costuma permanecer multidão, vagar para longe de si e alimentar sensações de chegar a lugar algum. Para que o extraordinário aconteça, parece impreciso conjeturar esboços aos novos caminhos.

Ficar á deriva de si, para suportar momentos de transição pode ajudar a desintoxicar as ressonâncias históricas, por onde alguns fantasmas ainda sobrevivem. Na multiplicidade dos cotidianos papéis, muitos são os esboços para depois de amanhã. Quem sabe o imaginário possa encontrar outros nexos, na especulação dos rascunhos com as provisórias certezas. Talvez aí a história de cada pessoa possa deixar de ter autoria desconhecida.

Michel Maffesoli assim refere, sobre a natureza dos disfarces: “o sentido para a pessoa é fornecido pela pluralidade das máscaras que a constituem, e pelo contexto no qual suas diversas máscaras poderão expressar-se”.

Um lugar onde as miragens e a sensação de se mover em direção ao nada, sejam superados pelo olhar a desvendar subúrbios. A restrição intercalada nas crises de cada um, pode querer dizer coisas ainda sem nome ou referir exílios, quando os contornos inesperados começarem a surgir.

Quem sabe uma epistemologia mutante, consiga dialogar com o ímpeto de transformação calado pela ética dos consensos. Capaz de realizar as proezas e peculiaridades, reservadas a essa afinidade enigmática onde ser e não-ser passam a integrar uma coisa só.

Ao tentar desconstruir a idéia de que o melhor já foi feito, aumenta a suspeita de se encontrar a improvável arte de encantar a vida. Uma pluralidade perspectiva onde os subterfúgios de transgressão surgem em contraponto à rigidez de uma só versão.

Na dialética de Jorge Luis Borges: “o homem que se desloca modifica as formas que o circundam”. Assim a expressividade clandestina pode descobrir vias de acesso às novas linguagens e horizontes plurais, até então tidos como absurdos na ótica do bom senso.

O itinerário nômade ou de percurso desnorteado aprecia descrever inacreditáveis fenômenos. A busca por cultivar espíritos livres parece estar relacionada à contradição com os propósitos de ser um só. Presságios para alguém desacostumado com a procura pelos arredores de si mesmo.

Ao perseguir coisas de superfície é provável a verdade de cada qual seguir impronunciada.

Localizar episódios existenciais até então desarticulados, pode ajudar a intuição e o instinto encontrar novos rumos. Nos sucessivos enredos contidos entre o dizer e o fazer, os estilhaços da errância podem realizar façanhas consideradas fantasiosas e descobrir vontades ainda sem representação.

O apelo sedutor dos princípios de verdade costuma conter sofisticadas armadilhas, várias delas estimulam alguma forma de competição ou comparação com os demais. Nesse sentido, apostam na dificuldade em se descobrir as lógicas do imprevisível, ao sugerir sua incompreensão ou desatino. Ao vislumbrar as texturas do paraíso perdido, talvez seja possível encontrar a fonte de inspiração para o que vem depois.