segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Lúcio Packter - criador da Filosofia Clínica





Lúcio Packter, um nome de muitos
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Como devo chamar alguém, pelo seu nome? Mas o que é um nome? Um surdo ou indistinto rabisco num papel que nada significa, sem história? Apenas um ruído, um gesto da boca ou da mão, sem propósito ou verdade? Este signo dado a uma criança ao nascer, de acordo com a cultura e os costumes de cada povo e pelo qual ela é conhecida e chamada, menciona alguma “substância” e pelo menos alguns adjetivos. Um nome pode ser legitimamente substituído por meras interjeições ou até simples assovios... Pode-se dá-lo sobre várias linguagens, trocá-lo mais tarde por apelidos ou pelos ajustes do marketing. Tudo isso e muito mais, com vários termos de comunicação, como a chamar pelos olhos, um apontar o dedo ou por um gesto de carinho. Pode-se dar a um homem um nome qualquer, indiferente ou carregado de grande importância social... mas as profundidades desse nome só poderão ser ouvidas na certeza de que nenhum conhecimento é suficiente à vida.
Há uma diferença em dizer: “– ei pedra!” e “– ei José!”. Mas qual? Seria imperdoável engano pensar que hoje em dia as pessoas sabem-na bem. Até porque ainda é mais fácil usar um só nome para muitos, poupando o desconcerto e o tempo da pergunta: “qual o seu nome?”. Uma multidão de mistérios e segredos individuais, chamados de “...seu Zé, dona Maria” etc. Segredos tão velados que nem os próprios saberiam contar. Codinomes que toda estação e sociedade possuem, fabricam, multiplicam e até esquecem de que guardam algum sobrenome. Ainda que a memória me deixe lembrar o quanto já conheço de alguém, o fato de repetir seu nome nem sempre me permite saber alguma verdade. E o que se pode entender por um nome, se não um resumo de pensamentos e desejos... dos nossos pensamentos sobre ele? Pensam alguns que só índios, místicos e orientais possuem nomes com significados. Quanta tolice! Acaso o sentido da vida está posto em palavras? Também, mas a vida tem muitos nomes. As palavras se repetem, porém o significado da existência que um nome próprio expressa não tem som. Nome é o título dado a uma biografia, mesmo que em anonimato nunca se o pronuncie.
É bem verdade que o nome de uma pessoa, sem nenhum prejuízo ou caráter diminutivo, pode ser irrelevante para ela mesma. Nem por isso se deve chamar outrem como se ele não tivesse uma estima de preço inigualável; como fosse proprietário da atenção alheia, reclamando a posse. Nome próprio não é sinal de mando, nem de obediência. Há que se demorar um pouco nos olhos, para que a vida não perca a direção e jamais esqueçamos que, se as roupas se parecem, os olhos não. Em casos legítimos de timidez, existem recursos maravilhosos. Percorra rapidamente o rosto, valorizando os sorrisos no canto da boca, ou qualquer tristeza, a pedir compaixão; o brinquedo que a criança exibe; a roupa de quem dela se orgulha; o ambiente em que se dá o encontro; o aroma gostoso do perfume, se houver... Ouça atentamente o que ela tem a dizer, e não se esqueça de retribuir a certeza de que ela foi ouvida. Elogios nem sempre usam palavras.
Enfim, há sempre tantas coisas para se observar naquele que cumprimentamos, que é possível descobrir qualidades que definem mais e melhor que seu próprio nome, como referências de identidade, pelas quais ele gostaria ser conhecido, como a dizer: “fulano, aquele moço inteligente, que é educado com todo mundo...”. Em especial, o mais importante do nome de uma pessoa, a cada encontro, é a história de vida dela, que não sabemos e talvez não devamos saber. Quando se deseja saber quem é alguém, o nome é a palavra dada ao mistério e à beleza que isso tudo representa. Quem apenas se interesse pelas atividades da semana e os desejos do corpo, não há de entender uma personalidade à luz da história de um povo ou do apreço que lhe confere um amigo, pelo qual todos os anônimos revelam seu valor.
Ao anonimato, contudo, existem duas formas extremas e diferentes de significá-lo, além, naturalmente, dos meios-termos. Uns são desconhecidos porque não têm autoria em quase nada, indiferentes a tudo. Há pessoas que, existindo, pouco vivem a própria realidade e, como fantasmas errantes, não enchem suas casas com alegrias. Conquanto se banqueteiem de mil caprichos, bebam e comam fantasias de consumo, obesos, fastos e cheios do cotidiano... espiritualmente estão cansados. Com o tempo, a preguiça lhes aumentou o peso e a ilusão de que a vida é um fardo e o trabalho uma maldição.
Porém, há anônimos grandes, porque engrandecem a vida de todos. Sabe-se a grandeza de alguém pela forma como trata os pequeninos: com igualdade. Acordando os seus sonhos, iluminam a existência dos que ainda dormem na vida. Humildade dos heróis, não dos covardes, pois suas vidas não lhe cabem no corpo e, excedendo-se em coragem, vencem o impulso de acreditarem-se melhores. Com mais poder, aceitam a ajuda dos mais fracos, alimentando-lhes a crença da força em si mesmos. Possuem a caridade de receber o melhor de cada um, e preferem isso a serem conhecidos como doadores. São mestres a desejar outros mestres e não discípulos, deixando as lições e provas para as escolas da vida.
Dizendo assim, um nome é tão maior quanto maior for a compreensão do seu significado e as profundidades da sabedoria. Seja o nome conhecido ou não. O registro de cada um nesta vida é a máscara ou a lente que esconde ou revela o coração da humanidade no peito que o abriga. Não obstante uns sejam ávidos por renome, outros encontram paz na escuta. Conheci pessoalmente homens e mulheres de ambos os tipos. Mas, para ser verdadeiramente justo com os bons, devo dizer que nenhuma virtude é exclusiva de alguém. Antes, qualquer mérito pessoal é resultado das conquistas acumuladas e forças conjuntas da sociedade e da história de todos os que lhe envolvem e antecederam. Quantas vezes foram os maus que nos ensinaram que também não éramos bons? E o que dizer de um campeão olímpico, se não que a potência da sua saúde física e sua determinação moral existem, têm origem e dívidas com a família que lhe alimentou e o fez crescer? Isso e tanto mais detalhes que não podem ser suficientemente conhecidos... Talvez a única exclusiva e legítima virtude de um indivíduo seja a gratidão que se deve ao mundo que o sustenta.
Não existe pura individualidade. Cada ser humano é duplo, é a substância física e espiritual do mundo acrescida de uma vontade e uma consciência de limites pessoais. As moléculas dos meus ossos e músculos são exatamente iguais a de muitos minerais da terra, e nenhum átomo sequer pertence exclusivamente a alguém, em suas constantes mudanças de energia. E qual é a perfeita diferença entre os meus sentimentos de amor e ódio e as emoções com que Machado de Assis escreveu toda a sua obra, a falar da condição humana? Que resposta pode se dar à pergunta: quem sou eu? De que são feitas as minhas crenças, inteligência e caráter? Eu sou o mundo sob o alcance da minha perspectiva, a soma da energia e influência dos meus professores do colégio, da genialidade dos artistas, cientistas, filósofos e santos, dos livros e também das lavadeiras, dos motoristas de ônibus, médicos e faxineiros, do movimento hippie nos EUA, da Revolução francesa no séc. XVIII, da mobilização mundial contra o nazismo e seu atual ressurgimento a me exigir sérias atitudes... Tivesse eu nascido noutro continente, família, cultura, religião e classe social, ainda que numa mesma época, haveria de conhecer, pensar, sentir e ser quem eu acho que sou? Muitas e muitas vezes a experiência demonstrou eu ser o contrário do que eu próprio imaginava ser. A resposta é que eu sou o que sei e muito mais ainda o que não sei de mim mesmo. O que fizeram de bem e de mal em mim e, especialmente, o que eu souber fazer com isso.
Cônscio de seu real tamanho, uma pessoa verdadeiramente boa toma para si a responsabilidade de cuidar dos semelhantes. Esta é a sua diferença dos tolos, que sequer cuidam de si próprios. Os tolos ainda não sabem que estão unidos ao destino comum e que suas mais íntimas qualidades fazem parte do mundo em que elas se encontram. Todos somos elos sagrados entre o passado e o futuro, na evolução da vida. Há pessoas que são como pérolas, outras são como ostras. Mas de onde vêm as pérolas? Do que sei, aprendi que a bondade vem da gratidão e da alegria em retribuir o legado da história dos grandes e do silêncio dos anônimos. Os que beberam da seiva universal da vida, da humildade e da certeza de que todos somos um, cada qual ao seu modo, entusiasmaram seus temperamentos com vontade e suas iniciativas com o trabalho. A vida dá a cada pessoa um talento especial, como fonte de sua íntima sensação de ser pessoalmente humano, herdeiro da humanidade. Em cada nome há um talento único para se definir, e é a isto que se deve evocar, quando alguém é chamado.
É no bojo dessa reflexão filosófica do nome e o ser do nome que me debruço com a gigante tarefa de saber como devo chamar o amigo, o terapeuta, o professor Lúcio Packter, pois ele professa meus anseios do bem e os de toda a família dos inquietos e esperançosos. Ao repetir seu nome, pelo amor que ele investe na vida e nos seres, eu ouço as ambições benignas da coletividade e o imperativo das mudanças que confirmam à história o seu papel de progresso. Pelo que o nome representa, acredito que quando seu nome for dito pela geração do porvir, entre os filósofos e os homens de bem, e mesmo entre aqueles que gostam de repetir nomes famosos, retirados dos livros, não será apenas o de uma pessoa no singular. Terá sido pronunciado um dos nomes da expansão e maturidade de nossa era, pois sei que nele vivem a compaixão, as vitórias e as derrotas, os dramas e os gozos da história humana.
Uma vida, uma humanidade. Isso é igual para todos, mas nele – o que é inalienavelmente atributo privilegiado de seu caráter – a isto se acresceu a coragem de atender ao apelo visionário de sua época. Como um pequeno profeta, que não opera milagres, mas ajuda uma nação a articular as alternativas do seu próprio destino, através da Filosofia Clínica, sua criação, ele nos proporciona hoje uma visão nova e ímpar da psicoterapia e dos cuidados para com o outro. Esta filosofia provará ser de imensa fecundidade histórica, não por ser uma promessa, mas sim por já iluminar o presente. Quanto a este homem, não há porque falar da maneira como ele se veste, se comporta ou dos pequenos detalhes. No entanto, para se compreender de modo justo o bem que representa, é preciso ver nele o que o nosso tempo nos pede para ver, e nos perguntar que caminhos seguir. Somente assim compreenderemos que resposta ele soube nos dar. Nos anos em que o tenho ouvido, muito tenho aprendido sobre a humanidade e o que diz o respeito ao próximo. O seu nome é Lúcio Packter e assim devo chamá-lo, mas seu pronome pessoal é “nós”.

[*] O presente artigo foi pronunciado na noite de 23 de junho de 2002, na sede do Instituto Packter, em Porto Alegre, na Semana de Estudos em Filosofia Clínica. O texto foi adaptado para publicação.

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