A oração "Ave Maria", amplamente reconhecida como um pilar da tradição cristã, transcende os limites da espiritualidade formal e se torna um objeto de investigação filosófica e psicológica. Sua riqueza simbólica, aliada ao impacto emocional e espiritual que exerce sobre os fiéis, permite uma análise interdisciplinar, integrando filosofia, psicologia positiva e psicologia junguiana.
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1. Perspectiva Filosófica: A Contemplação da Virtude e do Divino
Do ponto de vista filosófico, a "Ave Maria" pode ser compreendida como uma ode à transcendência. A saudação "Ave, cheia de graça" evoca uma visão platônica do ideal de perfeição, onde Maria é elevada ao arquétipo do Bem. Para Platão, o Bem é a forma suprema, acessível através da contemplação intelectual e espiritual, e Maria pode ser vista como um canal para essa experiência.
Aristóteles, por outro lado, enfatizaria o papel da virtude em Maria, reconhecendo nela a aretê, ou excelência moral, que inspira os indivíduos a buscar a eudaimonia, a plenitude da vida. Além disso, Santo Agostinho e Tomás de Aquino interpretam Maria como um reflexo da graça divina, reconciliando o finito e o infinito.
A dimensão ética da oração também é notável, pois a invocação de Maria como "Mãe de Deus" e "rogai por nós, pecadores" sugere a necessidade de intercessão e reconciliação, fundamentos da ética cristã. Essa visão é ressonante com a ética da alteridade de Emmanuel Levinas, onde o apelo ao outro – no caso, Maria – simboliza a responsabilidade pelo bem-estar coletivo.
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2. Psicologia Positiva: O Poder Transformador da Fé e da Gratidão
A psicologia positiva, desenvolvida por Martin Seligman, encontra na "Ave Maria" uma fonte de emoções positivas que promovem o bem-estar psicológico. O ato de recitar a oração estimula sentimentos de esperança, gratidão e amor, essenciais para a resiliência emocional.
2.1. Esperança como Força Motriz:
O pedido "rogai por nós, pecadores" reflete a busca por um futuro melhor, um elemento essencial para a construção da esperança, que Seligman identifica como um dos pilares do florescimento humano. A esperança, neste contexto, é alimentada pela crença em uma força superior que pode intervir em momentos de dificuldade.
2.2. Gratidão e Bem-Estar:
A exaltação de Maria como "bendita entre as mulheres" é um reconhecimento que pode ser associado ao exercício da gratidão. Estudos indicam que a prática regular da gratidão melhora a saúde mental e reduz sintomas de depressão e ansiedade, efeitos que podem ser experienciados ao meditar sobre as palavras da oração.
2.3. Significado e Conexão Espiritual:
A repetição da "Ave Maria" em práticas como o terço reforça o senso de significado e propósito, elementos fundamentais para a psicologia positiva. Essa prática cria um estado meditativo que promove a calma e a regulação emocional.
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3. Psicologia Junguiana: A Oração como Arquétipo e Processo de Individuação
Carl Gustav Jung oferece uma interpretação simbólica profunda da "Ave Maria", integrando-a no contexto do inconsciente coletivo e dos arquétipos. Para Jung, Maria é a personificação do arquétipo da Grande Mãe, que representa acolhimento, nutrição e proteção.
3.1. Arquétipo da Grande Mãe:
A invocação de Maria como "Mãe de Deus" reforça a conexão com o arquétipo da Grande Mãe, que transcende tradições religiosas e aparece em diversas culturas. Esse arquétipo simboliza o útero cósmico, onde a transformação e o renascimento ocorrem. Na prática da oração, o indivíduo encontra consolo e força para enfrentar seus desafios internos.
3.2. Processo de Individuação:
A oração também pode ser vista como uma ferramenta no processo de individuação. Ao reconhecer sua condição de "pecador" e buscar a intercessão de Maria, o indivíduo confronta suas próprias sombras e aspira à integração das polaridades internas. Maria, como símbolo da graça e da compaixão, torna-se uma guia nesse caminho.
3.3. Reconexão com o Sagrado Feminino:
Na psicologia junguiana, o Sagrado Feminino é essencial para o equilíbrio psíquico. A veneração de Maria proporciona um espaço para reconectar-se com as qualidades femininas da psique, como intuição, cuidado e empatia.
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Uma Análise da Oração "Ave Maria" sob a Perspectiva Freudiana
A oração "Ave Maria", como objeto de estudo psicanalítico, apresenta uma rica gama de conteúdos simbólicos que dialogam diretamente com os conceitos fundamentais da teoria de Sigmund Freud. Na psicanálise freudiana, a religiosidade é vista como uma manifestação do inconsciente, carregada de conteúdos emocionais relacionados à infância, às figuras parentais e ao desejo de proteção. Nesse contexto, a "Ave Maria" pode ser analisada como uma expressão cultural e psíquica de mecanismos como a idealização, a regressão e a sublimação.
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1. A Figura de Maria e o Complexo Materno
Freud reconheceu o papel central das figuras parentais na formação do aparelho psíquico, particularmente na construção do eu e na resolução do Complexo de Édipo. A figura de Maria, invocada na oração como "Mãe de Deus", pode ser interpretada como uma projeção cultural do arquétipo materno, uma representação simbólica da mãe ideal.
1.1. Idealização Materna:
Maria é elevada à condição de "cheia de graça", um modelo perfeito de pureza e amor. Essa idealização reflete o desejo inconsciente de retornar ao estado de segurança absoluto associado à relação com a mãe na primeira infância, quando ela é percebida como onipotente e incondicionalmente acolhedora.
1.2. O Desejo de Proteção e a Regressão:
O apelo "rogai por nós, pecadores" manifesta um anseio por proteção e perdão, típico da relação com a mãe na infância. Segundo Freud, a religião frequentemente atua como uma "neurose universal", permitindo que os indivíduos regressem simbolicamente a um estado de dependência infantil perante uma figura protetora.
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2. Religião como Sublimação
Freud descreve a sublimação como um processo pelo qual desejos instintuais, especialmente ligados à sexualidade e agressividade, são transformados em formas socialmente aceitáveis, como a arte, a ciência e a religião. A "Ave Maria", com sua linguagem exaltada e devoção à figura materna, pode ser vista como uma sublimação do desejo de unidade e reconciliação.
2.1. A Subjugação do Instinto:
A oração direciona a energia psíquica de impulsos libidinais para um objeto transcendente, Maria, promovendo a contenção dos instintos primários e sua canalização para o âmbito espiritual.
2.2. Redenção e Culpa:
O trecho "rogai por nós, pecadores" evidencia a internalização do Superego, a estrutura psíquica responsável pela moralidade. A oração permite a elaboração simbólica da culpa, oferecendo um espaço para buscar a reconciliação com os ideais culturais e religiosos introjetados.
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3. O Inconsciente e os Simbolismos da Oração
A linguagem da "Ave Maria" carrega uma riqueza de simbolismos que, segundo Freud, refletem conteúdos do inconsciente coletivo e individual. A saudação "bendita sois vós entre as mulheres" evoca uma representação arquetípica da feminilidade idealizada, enquanto a figura de Jesus, mencionada como fruto do ventre de Maria, representa o cumprimento do desejo de perpetuação e transcendência.
3.1. Transferência Psíquica:
Ao dirigir a oração a Maria, o indivíduo transfere para ela os afetos e desejos inconscientes ligados à figura materna. Essa transferência cria um espaço de elaboração psíquica, onde o sujeito projeta e organiza suas angústias e esperanças.
3.2. O Retorno ao Útero Psíquico:
O apelo à "Mãe de Deus" pode ser lido como uma tentativa de reconexão simbólica com o útero materno, um desejo inconsciente de regressar a um estado pré-edípico de harmonia e proteção absoluta.
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4. Religião e Neurose: A Função Psicológica da Oração
Freud, em O Futuro de uma Ilusão (1927), argumenta que a religião desempenha um papel análogo ao da neurose, ao oferecer uma estrutura simbólica para lidar com a ansiedade existencial e o medo da morte. A "Ave Maria", ao invocar Maria como intercessora e mediadora, proporciona uma válvula de escape para as tensões internas, funcionando como um mecanismo de defesa.
4.1. Alívio da Ansiedade:
O ato de recitar a oração cria um ritual repetitivo que reduz a ansiedade ao oferecer uma sensação de controle simbólico sobre o destino.
4.2. Reconciliação com o Superego:
A súplica por intercessão expõe o conflito entre os desejos do Id e as restrições impostas pelo Superego, promovendo a reconciliação por meio do perdão simbólico.
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Conclusão
A "Ave Maria", analisada por meio da filosofia, psicologia positiva e psicologia junguiana e da psicanálise, transcende seu papel como uma oração litúrgica e se torna um rico campo de estudo interdisciplinar.
Sua estrutura ressoa com temas universais de virtude, esperança e transformação interna, oferecendo insights valiosos para aqueles que buscam compreender a espiritualidade como parte da experiência humana.
Sob a lente freudiana, a "Ave Maria" é mais do que uma expressão de fé: ela se torna um reflexo das dinâmicas inconscientes que estruturam o aparelho psíquico.
A idealização de Maria, a busca por proteção e a sublimação dos instintos revelam a complexidade da relação entre religião e psicologia, destacando como os rituais e símbolos religiosos servem tanto à organização psíquica quanto à integração do indivíduo na cultura.
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Pesquisa, texto e análise de Mauro Lúcio Gomes - Neuropsicanalista, professor de filosofia/história, palestrante, escritor, especialista em Psicologia, Psicologia Positiva.